Especialistas se opõem a projeto que agrava criminalização do aborto

Cientistas, juristas e instituições de classe consideram projeto de lei 5069/13 inconstitucional e dizem que proposta anula conquistas históricas das mulheres e o direito ao atendimento à saúde
O polêmico projeto de lei (nº 5069/2013), de autoria do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), representa um retrocesso para o País, porque agrava a criminalização do aborto, é inconstitucional e viola tanto conquistas históricas das mulheres nos direitos sexuais e reprodutivos como o direito ao atendimento à saúde. Essa é a avaliação de especialistas da área de saúde, de órgãos de estudos feministas e juristas que recomendam a retirada da proposta da pauta de tramitação.
A proposta prevê impedir a prevenção de gravidez em casos de estupro, inviabilizando um direito das mulheres garantido pelo Código Penal desde 1940, e também penaliza o profissional da área de saúde que tentar agir para preservar a saúde da mulher antes que as vítimas façam exame de corpo de delito e boletins de ocorrência (BO) para comprovar a violência sexual. O projeto também impede a divulgação de métodos abortivos.
Na prática, a proposta de lei prevê alterar o Código Penal e propõe a inclusão do artigo 127-A, estabelecendo penas que podem variar de cinco a dez anos a profissionais da saúde pública (médico, farmacêutico, enfermeiro) caso venham a sugerir a antecipação terapêutica do parto a uma mulher grávida que corre risco de morrer e que a gravidez seja levada adiante. Isso porque o profissional, conforme a proposta, estaria "a induzir ou instigar" a prática de aborto. A pena aumenta quando a gestante induzida ao aborto for menor de idade.
O texto do documento, que estava na ordem do dia da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) desta quinta-feira, 24, foi retirado da pauta, em razão da aprovação de requerimento para realização de audiência pública, na próxima quinta-feira, para debater o tema, na mesma comissão. Trata-se de pedido solicitado ontem, 23, pela deputada Erika Kokay (PT-DF). Na semana passada a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), havia apresentado requerimento para que o projeto seja avaliado também pela Comissão de Seguridade Social e Família. Até então, a tramitação do projeto exigia apenas a avaliação da CCJC e, posteriormente, passar pelo crivo do Plenário da Câmara.
Conforme dados do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), ONG defensora do feminismo, dos direitos humanos, da democracia e da igualdade racial, encaminhados em carta aos deputados, juntamente com outras instituições, o Código Penal de 1940 tinha uma definição limitada quanto ao crime de estupro, que foi aprimorada com o artigo 2º da Lei 12.845, de 2013, que define estupro como "qualquer forma de atividade sexual não consentida".
Conforme esclarece a instituição, o texto do projeto de lei em discussão propõe a supressão "desse importante artigo" e, com isso, impõe às mulheres e meninas a necessidade de exame de corpo de delito para comprovar a violência sexual, fazendo com que as vítimas sejam novamente submetidas à "Via Crucis" da revitimização, da violência do Estado, para que possam "comprovar" os abusos e violências que sofreram. A carta diz que a proposta "é uma reação extremista, conservadora e fundamentalista".
Proposta pode inviabilizar aborto legal
O CFEMEA esclarece, ainda, que pelo Código Penal e pelas últimas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), a interrupção da gravidez hoje é permitida em três situações: risco de vida da gestante, quando a gestação resulta de estupro ou quando o feto é anencéfalo. O projeto de lei, porém, segundo a instituição, trata de inviabilizar todas as possibilidades de abortamento legal.
Absurdos na proposta
O cientista Thomaz Rafael Gollop, médico ginecologista e obstetra, disse que o teor desse projeto é altamente retrógrado, policialesco e contrário ao estado laico. Ele considera um absurdo o fato de o projeto exigir que vítimas de estupros façam exame de corpo de delito e realização de boletins de ocorrência (BO) para comprovar a violência sexual para, posteriormente, obterem atendimento médico.
Diante da gravidade da matéria, Gollop espera que o projeto não venha estabelecer uma bolsa financeira às mulheres vítimas de violência e que resolvam ter os seus filhos. "Isso seria um absurdo, porque não se mantém uma gravidez vítima de violência dando um subsídio estatal. Isso não existe em nenhum país do mundo", disse ele, que é membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA), professor livre-docente da Faculdade de Medicina de São Paulo e médico do Corpo Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein.
A expectativa de Gollop é de que o projeto, em discussão, seja barrado no Senado Federal, caso venha a evoluir na Câmara dos Deputados. Na semana passada, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou requerimento para que o projeto seja avaliado também pela Comissão de Seguridade Social e Família; e ontem, 23, a deputada Erika Kokay (PT-DF) apresentou requerimento para realização de audiência pública na CCJC para discutir a proposta. Por enquanto, a tramitação do projeto exige apenas a avaliação da CCJC e, posteriormente, ao crivo do Plenário.
De acordo com o CFEMEA, em 2013 foram notificados 22.914 casos de violência sexual contra pessoas do sexo feminino, dos quais 33,4% das vítimas foram meninas de 10 a 14 anos; em 33,4% dos casos, meninas de 15 a 19 anos e; e em 23,3% dos casos, mulheres de 20 a 59 anos.
Inconstitucionalidade do projeto
O juiz José Henrique Torres, da vara do Tribunal do Júri de Campinas (SP) e presidente da Associação dos Juízes pela Democracia, o projeto é inconstitucional porque, entre outros fatores, contraria a assistência à saúde. Ele lembrou que no Uruguai foi adotado um projeto chamado iniciativa sanitária, que possibilitava o atendimento antes e depois do aborto criminoso, a partir de orientações, sempre visando a redução de danos para preservar a saúde da mulher. Com a medida, o país uruguaio conseguiu reduzir a zero (0%) a mortalidade materna por aborto.
Já o projeto de lei (nº 5069/2013) não dá importância a eventuais danos à saúde da mulher, já que o profissional não poderia agir para preservar a saúde da vítima. "Isso viola o direito à saúde, minimamente; e contraria não somente a Constituição Federal, mas também os preceitos internacionais de direitos humanos", analisou o jurista.
Para Jolúzia Batista, consultora do CFEMEA, o projeto proíbe a chamada "pílula do dia seguinte" porque coloca a questão do impedimento à anticoncepção de emergência e a informação sobre aborto legal. "Se o projeto de lei for aprovado vai retroceder sobre todo o aborto legal", declarou.
Justificativas do projeto de lei e de requerimentos
A deputada Erika Kokay, na justificativa de seu requerimento, para discutir a proposta em audiência pública, alertou que existe uma discussão de organizações que defendem a descriminalização do aborto e, que ao defender isso, essas instituições poderão incorrer a um crime, caso o projeto seja aprovado. Dessa forma, a deputada entende que a audiência pública possibilitaria entender os meandros do projeto de lei com a consciência de que ninguém defende o aborto como método contraceptivo; e que a mulher que se vê obrigada a praticar o aborto, mesmo recorrendo às possibilidades legais, vive um drama sem precedentes e necessita de um atendimento eficiente sob pena de ser mais um número "da horrível" estatística de mortalidade feminina.
Na justifica do projeto de lei, Eduardo Cunha diz que a legalização do aborto vem sendo imposta no mundo por organizações internacionais inspiradas por uma ideologia neomalthusiana de controle populacional, financiadas por fundações norte-americanas ligadas a interesses super-capitalistas. Mais informações sobre o projeto de lei.
Viviane Monteiro/ Jornal da Ciência
Várias instituições manifestam posicionamento contrário ao PL. Veja abaixo a íntegra de alguns manifestos de repúdio ao PL 5069/2013:
Movimento "Por todas as famílias
+ Notícias