As conquistas de Ceci Juruá
Defendo não a igualdade de oportunidades (algo etéreo, oportunidade), mas a igualdade socialista nos termos colocados por Oskar Lange : o direito de todo cidadão e cidadã às condições mínimas da sobrevivência social
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A economista Ceci Juruá é uma mulher independente desde que chegou ao Rio de Janeiro, aos 18 anos, e aí viveu sem a família, durante mais de 5 anos, até que viessem também os irmãos e a mãe. Formada pela Escola Normal (formação de professores) e pelo Curso Clássico, e com domínio do francês, começou a trabalhar em uma estatal francesa como telefonista. Ao sair, aos 25 anos, era uma secretária esteno-datilógrafa bilíngue bem remunerada. Estudava economia à noite e deu início à carreira que a levaria a focar seu trabalho nos temas Estado, finanças públicas e transportes. É uma carreira que ela conciliou com a maternidade e os sonhos de ajudar a construir uma sociedade que assegurasse as condições mínimas da sobrevivência: casa, comida, educação e saúde, ao que ela acrescenta hoje, luz e transporte digno. Nesta entrevista ao site CNTU, Ceci Juruá conta um pouco dessa trajetória, passando pelos anos mais difíceis da ditadura militar e a luta pela redemocratização do país.
Como era o ambiente acadêmico quando você cursou Economia?
Fiz a faculdade de economia à noite, na Universidade Candido Mendes, no centro do Rio de Janeiro. A Universidade, naqueles anos iniciais da década de 1960, passava por um período de renovação e de modernização, pois Candido Mendes acabara de assumir a direção . Foi um grande diretor e um defensor dos direitos humanos, Cândido Mendes, mesmo após a implantação da ditadura, e hoje ele é um porta-voz da cultura latino-ibérica, a nossa. Tive professores jovens, competentes e formados, alguns, na Escola da Cepal e de Celso Furtado, o grande tema da época era o desenvolvimento econômico. Ansiávamos por uma Pátria livre e soberana, com justiça social. Este foi o sonho que abracei na juventude e que me impulsiona até hoje.
Economia era um tema novo nas Ciências Sociais, a profissão foi regulamentada ao final dos anos 1950. Durante os dois primeiros anos fomos apenas duas mulheres em uma turma de 50 alunos, 1/3 dos quais eram militares. Eu já era uma mulher livre e independente, morando só em apartamento alugado em Copacabana. Usei do tempo livre para estudar muito, pois me apaixonei pelas matérias do Curso de Economia, principalmente História e Desenvolvimento Econômico. Mas também Estado e direito constitucional, isto é, os fundamentos jurídicos do pacto social. Professor de Direito era o próprio Cândido Mendes, homem de grande cultura e com valores humanistas.
Havia diferença no convívio com colegas e economistas por ser mulher?
Em momento algum senti discriminação de sexo. Fui representante da turma durante os quatro anos do curso, candidata a presidente do diretório (perdi por 13 votos), e conseguimos realizar, na rua, na calçada, as eleições para a presidência da UNE. E fui eleita oradora da turma ao final dos quatro anos, o que acabou revogado pois os militares ameaçaram não participar da formatura se eu fosse a oradora. Vetaram também o patrono escolhido – Celso Furtado. Foi uma discriminação que não tinha nada a ver com o sexo, mas sim com a ideologia e posição política. Combatíamos a ditadura em todas as frentes onde participávamos. Participei também do Grupo dos 11, e era a única mulher do grupo ao qual ingenuamente me associei em março de 1964, às vésperas do golpe, tendo preenchido um formulário com nome completo e endereço !!!
Parti para a França com bolsa de estudos do governo francês, ali fiz tese de mestrado sobre Desenvolvimento econômico e Planejamento, estudei marxismo e a questão do Estado nacional. Hoje desaconselho que pessoas jovens façam pós-graduação em língua estrangeira, as palavras não fluem, a associação de pensamentos e idéias é mais difícil. Além disso, no exterior querem “fazer nossas cabeças”, é o primeiro passo do transplante cultural a que se refere Nelson Werneck em “Introdução à Revolução brasileira”. Tanto na América do Norte quanto na Europa predominam idéias e teorias vinculadas à ideologia do colonialismo.
E como foi a volta ao Brasil?
Foi terrível. É penoso enfrentar uma ditadura depois de 4 anos de exercício de democracia plena, como era o ambiente francês. Sofri muito de insônia (o medo!) e amnésia parcial. Além do mais eu me preparara intelectualmente para trabalhar no Estado, onde as portas estavam fechadas para pessoas como eu. Mas no Governo Geisel voltamos a respirar e pude entrar na Companhia do Metropolitano do Rio de Janeiro, de onde passei à Secretaria de Transportes do Estado do Rio de Janeiro, como assessora-chefe de Orçamento e Programação Econômica, com pouco mais de 35 anos. Não havia teoria sobre orçamento público, só a macroeconomia – que não ensina como lidar com problemas concretos. No exercício daquela função foi traçado meu futuro profissional – Estado, finanças públicas e transportes.
Antes disso eu havia sido professora (em regime CLT), na Universidade do Brasil, Depto de Ciências Sociais, na Praia Vermelha e no Largo de São Francisco. Foi uma boa experiência, para a qual eu ainda não estava preparada intelectualmente (foi em 1974). Mas me lembro bem que quando pronunciei o nome do professor Celso Furtado os alunos arregalaram os olhos, era um autor proibido !
Você enfrentou dificuldades na vida sindical?
Jamais senti discriminação de sexo, ratifico. Talvez porque nunca disputei o poder. Quando ele veio (gotinhas de poder), veio naturalmente decorrente de intensa participação política na luta pela redemocratização e pela melhoria das condições de vida do povo brasileiro. Fui diretora do IERJ, Instituto dos Economistas do Rio de Janeiro, e do Sindicato dos Economistas do RJ. Dali fui eleita vice-presidente da Federação Nacional dos Economistas (1986), quando então senti os primeiros golpes de uma “derrubada”, mas não por discriminação de sexo, mas por visão política diferente. Talvez ali eu tenha sido uma das pioneiras, a primeira mulher que ocupou aquele cargo, não sei, não conferi, não pesquisei. E a derrubada veio de gente do campo das esquerdas, esqueci os nomes. Estou falando da forma como senti os fatos.
Nesses anos 1980 eu já havia sido gratificada com o que considero o maior tesouro de uma mulher – uma filha. Dei-lhe o nome de Mayra, com o qual eu sonhava há uma década, desde que vi o filme de Gustavo Dahl – Uirá, o índio que partiu em busca de Deus. No inconsciente talvez, o orgulho dos antecedentes indígenas – minha avó era índia pura, meu pai nasceu às margens do Alto Juruá, e o escolheu como sobrenome. Indios para mim eram os povos que jamais se submeteram à escravidão. Além disso eram comunitários e respeitavam a natureza mãe, a Pacha Mama. Também cresci lendo José de Alencar e as poesias de Gonçalves Dias e Olavo Bilac, o que escreveu - Criança ! não verás nenhum país como este: / Imita na grandeza a terra em que nasceste ! - São versos e prosa que até hoje me emocionam. José de Alencar soube cantar as virtudes do homem brasileiro, este singular e genial mestiço, genial porque resistente às intempéries sociais.
Sobre igualdade acho difícil falar. Como Hanna Arendt penso que a desigualdade é não só natural, como importante, base da individualidade. Defendo não a igualdade de oportunidades (algo etéreo, oportunidade), mas a igualdade socialista nos termos colocados por Oskar Lange : o direito de todo cidadão e cidadã às condições mínimas da sobrevivência social: casa, comida, educação e saúde. Hoje eu acrescentaria Luz e Transporte digno.
O que te levou à militância pela causa dos transportes coletivos?
A convicção nos princípios socialistas que mencionei me conduziu à luta por transporte digno e barato, para que, em lugar de dormir na rua, todos pudessem voltar diariamente a seus lares, à luta pelo passe para idosos, para que estes tenham oportunidade de conviver com familiares e amigos, e possam sair dos minúsculos aposentos onde em geral passam a velhice, à luta pelo passe para desempregados, para que eles possam se locomover em busca de emprego. E pelo vale transporte, lei de iniciativa do paranaense Afonso Camargo.
Como presidente do Departamento de Transporte Rodoviário do Rio de Janeiro (Depro), tive a satisfação de participar da implantação do Vale Transporte no estado, uma conquista que ampliava em até 20% o poder aquisitivo da classe operária. Na época, os gastos mensais com transporte chegavam a absorver até 30% do salário do trabalhador ! Em termos de ganho real o vale transporte representou uma vitória jamais obtida por greve alguma. Além disso, o vale transporte poderia mobilizar o empresariado contra a ineficiência do transporte coletivo (o que não ocorreu até hoje). É provável que eu tenha sido também a primeira mulher a ocupar a presidência de uma autarquia de transportes, ambiente dominado por homens e engenheiros, até hoje penso. Foi um cargo alcançado com a ajuda de centenas de companheiros do PMDB que se mobilizaram pela democratização das políticas públicas e pela democratização das estatais.
Como você avalia essa época da redemocratização?
Parece-me injusto considerar a Década de 1980 como uma década perdida. Ali construímos, pela primeira vez em nossa história, uma Constituição verdadeiramente democrática, não transplantada dos países centrais, um pacto construído nas trincheiras da resistência democrática, um pacto que mirava a construção de um Estado efetivamente nacional, com a participação de todos, com redistribuição de renda (a Seguridade Social) e portanto capaz de exercer soberania em nome do povo brasileiro. Seria o desfecho feliz da Era Vargas.
A luta por um Estado democrático e por políticas públicas nacionais e populares foi uma das trincheiras de luta do IERJ, Instituto dos Economistas do Rio de Janeiro, e de entidades similares em outros estados do Brasil. A democratização da política econômica foi importante bandeira do IERJ, logo assumida por outros grupos do MDB, como o grupo ao qual já me referi. Como principio básico defendíamos que o Estado deveria libertar-se de grupos e servir ao interesse geral, deveria concorrer para “a felicidade geral da nação”, assumindo soberanamente políticas voltadas para a maioria da população brasileira. No IERJ, em defesa deste principio, destaco a participação de outras e muitas mulheres, com ênfase nos nomes de Maria da Conceição Tavares e Ana Célia Castro, ambas professoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Hoje, no Brasil, a presença de uma mulher na Presidência, apesar da pouca representatividade das mulheres na política, tem contribuído para melhorar as questões de gênero na sociedade?
Dilma é uma boa presidente do Brasil, nos limites e margens permitidos pelo contexto econômico e político. Ocupa dignamente esse cargo tão espinhoso, simboliza nossa vitória, na luta das mulheres brasileiras por independência, um lugar ao sol na sociedade e nos espaços de poder. Só se pode julgar alguém à luz das alternativas existentes, e certamente sua margem de manobra, de Dilma presidente, é muito pequena tendo em vista o poder econômico do grande capital nacional e estrangeiro, e sobretudo do capital parasitário – o rentista. Infelizmente, com as políticas dos anos 1990 a economia brasileira foi levada a uma trajetória de recolonização. Penso que Lula, e Dilma, tentam inverter esta trajetória. Mas a tarefa não é fácil, não só pela força dos poderosos, mas porque a sociedade brasileira anda apática e desmobilizada. A democracia perde força quando a soberania é desrespeitada.
Redação CNTU
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