Cotas e políticas de afirmação de gênero ainda são necessárias, diz médica
A médica Maria Rita de Assis Brasil conta sua trajetória desde os tempos em que mulheres não eram admitidas na residência em neurocirurgia, em Porto Alegre, nos idos de 70 e havia também auto-discriminação.
26032014-121851-mariaritaassisbrasil
A médica Maria Rita de Assis Brasil, já testemunhou limites que hoje seriam inadmíssíveis mas que restringiam a atuação das mulheres na medicina em plena capital do Rio Grande do Sul. Nos anos 70, periodo de opressão e de ditadura militar no país, ela não poderia trilhar a área de neurocirurgia, que a atraía, porque não eram admitidas mulheres nessa residência. E se esse tipo de impedimento caiu por terra, na prática, as mulheres continuam afetadas pela dupla jornada, razão de não fazerem, por exemplo, tantos plantões noturnos quanto os homens, e de se auto-discriminarem, como faziam no passado, colocando-se em posições secundárias.
"Ainda existe alguma coisa desta cultura", ela diz, embora não considere tão significativa. "Esta reflexão me leva a uma outra pergunta. Se são necessárias políticas para isto. Acho que sim, nós precisamos de políticas de afirmação de gênero", considera, e observa: "Isto se evidência na participação político partidária.
Maria Rita fala da vivência na profissão que a conduziu à vice-presidencia do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (SIMERS), que ocupa desde 1998, à diretoria de Direitos Humanos, Discriminação e Gênero da Federação Nacional dos Médicos e à supência do Conselho Fiscal da CNTU, nesta entrevista à Rita Casaro.
Como foi o seu ingresso na profissão?
Venho de uma família de médicos e sempre fui encantada pelas questões da área médica. Apesar de que estes médicos eram homens, eu sempre tive esta identificação com avô, pai e tio. Ai, eu fiz vestibular para Medicina na Universidade Federal de Santa Maria (RS) e entrei de primeira em 1972.
Houve dificuldades maiores por ser mulher?
Sim, naqueles anos 70 existia uma discriminação bem evidente em relação às mulheres. Em que pese elas já participassem das áreas ditas masculinas, como as cirúrgicas, ainda assim se via com alguma estranheza a participação delas. Existiam algumas outras áreas da cirurgia como a da ginecologia e obstetrícia, onde as mulheres têm, historicamente, uma participação maior. Mas eu, particularmente, gostava bastante da área de neurologia e, pensando nesta possibilidade, decidi entrar nesta área. Para minha surpresa, aonde existia a residência aqui no Rio Grande do Sul, era em Porto Alegre, onde fiquei sabendo que não se permitia que mulheres entrassem na residência de Neurocirurgia. Então, o dia a dia da vida me levou a outras áreas. Hoje, sou médica emergencista. Atualmente, as coisas mudaram muito e hoje as mulheres tem grande participação na área cirúrgica, mas a discriminação era uma realidade na minha profissão.
Você enfrentou algum tipo de discriminação ou assédio por ser mulher?
Testemunhou situações assim com outras colegas?Maria Rita: Mais ou menos. Como as nossas faculdades são cursos que todos entram se qualificando da mesma forma no ensino formal da Medicina, isto acontece um pouco menos. Mas as mulheres mesmo, e ai não falo só da discriminação do mundo masculino para com o feminino, mas das próprias mulheres, que se discriminavam um pouco. Elas se colocavam em papeis secundários, de menor responsabilidade em termos de horário, por exemplo. Ainda hoje, no hospital que eu trabalho, sou capaz de dizer que elas ainda fazem menos plantões noturnos. É que as mulheres têm estas atividades outras que não só as profissionais, aquilo que chamamos de dupla jornada de trabalho. E essas responsabilidades levam, quem sabe a ela, quem sabe a família, quem sabe o seu cônjuge, a tomar posições que não as afastem das noites em casa.
Ainda hoje as mulheres médicas enfrentam mais obstáculos que os colegas homens? Quais?
Eu acredito que não muito, em função da formação de todos, que é a mesma. As vezes, pode ocorrer pontualmente em alguma especialidade. Acho que se mantém um pouco ainda esta questão na Cirurgia. Mas o que tenho visto é que para seleção na residência médica o que vale é o currículo, a prova e a entrevista. Se uma mulher for menos impositiva em uma entrevista, o currículo é examinado de maneira cristalina (que é o que se espera!). Mas podemos dizer que ainda existe um resquício de tudo isto. E a mulher, de alguma maneira, se discrimina. Ainda existe alguma coisa desta cultura, mas não é significativo. E esta reflexão me leva a uma outra pergunta. Se são necessárias políticas para isto. Acho que sim, nós precisamos de políticas de afirmação de gênero, pois é tão antiga a nossa história de subordinação, que estas políticas afirmativas gênero ainda são necessárias hoje. Isto se evidência na participação político partidária. As mulheres participam dos partidos políticos, mas são minoria nos parlamentos. Da mesma forma nos sindicatos. Nós temos várias mulheres, mas elas não estão no mesmo número que os homens na diretoria e muitas vezes, os cargos de presidência, direção e secretaria geral não são delas. Mas acho que as coisas estão andando positivamente.
O que seria necessário para haver (caso não haja) igualdade plena na profissão e nos locais de trabalho?
Com relação à igualdade na profissão, nós sabemos que as mulheres médicas têm remuneração menor do que a dos homens. Não é que ela seja contratada por um salário menor. É que em razão da sua dupla jornada, ela assume menos atividades profissionais que o homem. É muito comum na nossa profissão ter dois ou três empregos. A mulher teria um ou dois, é mais ou menos assim a comparação. A sociedade precisa reconhecer que a mulher é a maior responsável pelas tarefas domésticas e criação dos filhos (não negar esta realidade!) e oferecer condições para ela poder ter uma situação de igualdade em relação aos homens. E nos locais de trabalho, não temos que nos achar todos iguais. Nós temos que respeitar nossas diferenças. As mulheres têm toda uma questão de fisiologia diferenciada, é necessário, por exemplo, que em um plantão a gente tenha quarto e banheiro masculino e feminino. Temos procurado incluir isto nos acordos e convenções coletivos de trabalho. Outra questão que é de todos, mas que vale sobretudo para a mulher, é a questão da segurança no trabalho. Sabemos que a mulher é mais vulnerável. Então, também faz parte das nossas negociações com os patrões, a questão da segurança focada no gênero.
Como você avalia a participação das mulheres no movimento sindical? O que, na sua opinião, precisaria mudar nesse campo?
Acho necessária a discriminação de gênero e questão das cotas. Na nossa experiência, as mulheres, quando participam, desenvolvem e assumem papeis de responsabilidade e de liderança que nem sabiam que tinham. Então, se existirem políticas afirmativas em relação a isto, certamente estes grupos de mulheres que participam de sindicatos, partidos políticos e todas as instâncias de entidades da sociedade civil vão se destacar. A mulher tem a características própria de lidar com seu entorno. Os homens têm menos comunicação, no sentido de formar grupos, aglutinar. As mulheres têm esta característica e que têm se destacado, por exemplo, na política institucional. No que pese hoje termos uma presidente mulher, ministras e várias parlamentares, ainda é minoritária a presença da mulher na política. Elas são a exceção, como sempre existiu. Hoje, em proporção um pouquinho maior, mas infinitamente menos do que se deseja.
Como você vê a participação da mulher na política hoje?
Embora tenha sido eleita uma presidenta, as mulheres ainda são minoria nos parlamentos e nos cargos executivos. O que é necessário para que haja uma real igualdade nesse campo?Maria Rita: As políticas afirmativas da participação das mulheres nos partidos políticos, sindicatos e entidades são absolutamente necessárias, porque na política partidária existe uma disputa, que, ás vezes, é cruel com relação ao poder. E a mulher é menos afeita a isto. O que não quer dizer que ela seja menos capaz.
A CNTU criou um Coletivo de Mulheres que tem o objetivo de debater a condição feminina nas questões ligadas a saúde, trabalho e política. O que você acha dessa iniciativa?
Absolutamente pertinente e necessário que a CNTU, que congrega várias federações de sindicatos, promova esta ação. Nós temos na CNTU alguns sindicatos eminentemente masculinos. Na nossa categoria dos médicos hoje, se somarmos com as estudantes de Medicina, já podemos dizer que somos maioria. Mas não somos a liderança. Então, fomentar esta participação na CNTU tem um valor enorme. É reconhecer que temos diferenças, que devem ser estimuladas para que a atuação das mulheres na política sindical seja propiciada de maneira ampla e competente
Qual a sua formação (curso, ano, instituição etc) e trajetória profissional?
Depois de me formar na faculdade de Medicina na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS), em 1977, fiz residência em Medicina Interna e fui me dedicando mais ao atendimento de urgência e emergência. Hoje a gente já chama de Emergencista. Também participei da Associação Gaúcha dos Médicos Residentes (1980-81). Antes de me formar, fui vereadora em Santa Maria (1976-82), pelo único partido de oposição que existia que era o MDB. Também participei do grupo de mulheres feministas, o grupo Germinal, de santa Maria. E atuei vários anos na participação de gênero. Depois, na área mesmo da Medicina, participei de conselhos de saúde. Coordenei o Conselho Municipal de Alvorada e integrei o Conselho Municipal de Porto Alegre. Hoje, integro o Conselho Estadual de Saúde do RS e as câmaras técnicas das emergências dos conselhos regional e nacional de Medicina. Participo da Confederação Médica da América Latina, Caribe e países Ibero-Americanos. Atualmente, sou médica emergencista no Hospital Nossa Senhora da Conceição, que é o maior complexo hospitalar aqui do Estado e conseqüentemente, a maior emergência pública do Rio Grande do Sul, e médica plantonista clínica no Hospital Ernesto Dornelles.
Por Rita Casaro e Rita Freire, com colaboração de Mirella Poyastro
+ Notícias